O Filme

O protagonismo nos palcos e bastidores de importantes movimentos musicais brasileiros, a rotina como professor de música em uma remota cidade mineira, o dilema existencial marcado pela tomada de consciência da realidade que nos cerca, a precoce passagem da filha caçula para o plano espiritual e a aguçada análise social de um dos maiores intelectuais e críticos culturais brasileiros formam a trama do longa-metragem documental Iris Blues – Balada a um Anjo na Terra, que retrata a vida de Frederico Mendonça de Oliveira, um dos mais completos e enigmáticos artistas brasileiros na atualidade.

 

O filme retrata o cotidiano do músico e artista plástico na cidade de Alfenas, onde reside atualmente e se dedica ao ensino musical em sua Oficina de Guitarra e Baixo. No trajeto entre a casa e a sala onde instrui seus alunos através do jazz, o filme busca revelar seu compromisso com a missão de professor, o convívio familiar alternado com sua solitude domiciliar, suas constatações políticas e filosóficas e, principalmente, sua concepção espiritual vinculada a uma forma muito peculiar de compreensão da existência humana.

 

O leitmotiv do longa-metragem consiste na dolorosa transição vivida por sua filha entre fevereiro de 2006 e janeiro de 2015, quando travou uma batalha contra um câncer. Ao mesmo tempo em que se coloca como mote da narrativa, sendo uma chave crucial para a compreensão da forma como o artista concebe e encara suas relações com o plano divino e espiritual, este episódio também entrelaça as várias dimensões sociais da existência material do guitarrista, que para ele são indissociáveis de um propósito espiritual muito maior.

 

Sendo sugestivamente produzido às vésperas do relançamento de seu primeiro livro biográfico documental O crime contra Tenório, o filme também possui um caráter de denúncia contra a indústria da cultura. Além disso, retrata as experiências de vida e a visão de mundo de um artista que, ao negar o preço do estrelato e optar pelo distanciamento da grande mídia, adquiriu uma forma bastante peculiar de enxergar as coisas: existir como um ser humano lidando com valores materiais e viver as experiências da espiritualidade, veiculadas também através de sua música. Em meio a uma instigante trama poética, o filme ainda busca retratar sua imensa paixão pelos felinos e sua convivência com Ivo, o gato com quem divide a casa, os livros e a audição constante de música resistente e evolutiva.

 

POR QUE UM FILME SOBRE O FREDERA?

 

A denúncia sobre o que levou a Música Popular Brasileira à estagnação que se encontra hoje já havia sido realizada por Fredera no talk-show Jô Soares Onze e Meia, quando de sua entrevista ao apresentador em 1996. Na ocasião, o guitarrista denunciou a existência de um golpe internacional que atingiu toda a classe musical e artística brasileira a partir da década de 1960, golpe este que vinha atrelado à instituição do mercado da canção pelas grandes gravadoras multinacionais instaladas no país naquele período.

 

Esse mercado, criado e imposto de maneira sistemática, operou de forma a consolidar a canção-mercadoria no lugar da canção-pensamento-artístico existente até então, obstando as demais manifestações artísticas indesejáveis e consideradas nocivas para os agentes a serviço da mundialização da cultura. Uma das principais ações neste sentido foi restringir a ação do instrumentista brasileiro, fazendo com que este perdesse seu status de arquiteto-condutor de uma música evolutiva para torná-lo, através do fechamento de seu espaço de atuação, um mero serviçal sem direitos e totalmente dependente de uma emergente classe de cantores, compositores e intérpretes recém-entronizados.

 

Estes artistas, laboratizados durante os festivais da canção (1965-1972), foram os responsáveis pela instituição de uma “nova canção” que tinha o objetivo de reduzir a música aos limites da canção popular comercial. Durante o processo, estes artistas subdimensionaram qualitativamente a música popular brasileira como um todo, invertendo drasticamente os valores musicais nacionais e fazendo com que a música passasse a se basear na glorificação das canções assimiláveis por públicos de leigos.

 

Na fase inicial deste processo surgiram ídolos como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Edu Lobo, entre outros. Depois, e até hoje, o compromisso com vender a canção popular obrigou a baixar o nível até fazer despencar na banalidade a canção, que passou a ser usada unicamente para entreter um público imenso através da construção de “famosos” endeusados por uma incomensurável legião de despreparados incautos.

 

Além de denunciar um fato inédito na história da música popular brasileira a partir de uma comprovada intervenção internacional na música e na cultura brasileiras, apresentando o lado mais perverso das gravadoras multinacionais e dos principais movimentos musicais brasileiros, o filme também traz uma trama poética que envolve a dimensão pessoal, profissional, política e espiritualista da vida deste grande compositor e guitarrista.